segunda-feira, 26 de abril de 2010

Um quintal


Não tem como a gente guardar tudo que lê não é mesmo? Nem na cabeça, nem em prateleiras. Se vocês forem como eu, que não pode ficar à toa e já está procurando alguma coisa pra decodificar, fica difícil. Hoje o mundo tem muita informação, dentro disso, muita inutilidade, o que representa um risco incalculável de perda de tempo.

Mas também tem muita coisa legal e que dá vontade de compartilhar. Essa semana estava na manicure e li um artigo muito bom da Danuza Leão na revista Cláudia, que acho uma pobreza de espírito com aqueles manuais de enlouquecer seu homem na cama e 15 maneiras de ficar ‘sequinha’ pro verão. Mas sempre tem algo que dá pra garimpar, nesse caso o artigo da Danuza, de quem virei simpatizante e fã desde que li seu livro autobiográfico.

A internet colabora. Cheguei na redação, busquei no google (vanusa leão - quintal), encontrei e agora posso mostrar aqui pra quem não leu. Me identifiquei bastante, muito feliz, por ter um quintal de terra batida pras crias lembrarem daqui uns anos, quintal que vai fazer parte da sua mochilinha de ferramentas pra vida. E tem as coisas essenciais que ela cita, um abacateiro, uma goiabeira, árvores que não parecem ter sido plantadas mas sempre existido. Tem também pica pau e seu rastro de buracos simétricos e perfeitos no tronco de um ingazeiro. E uma coruja que senta no poste de luz. Uma família de aracuãs, pai, mãe e filho. Formigas. Insetos de todas as formas e tamanhos. E piolhos de cobra. E mosquitos, muitos. Lagartixas, gordas. Tem bananeira e bambu, deve ter cobra. Tem um balanço de corda e madeira e muita folha seca. Tem uma ducha pra lavar o pé, e tem as porcarias. Até uma quadra de basquete improvisada, segundo meu amigo Jota, ideal pra jogar ‘21’. Tem silêncio, luar, e nascer do sol, estrelas e céu rosa, nessa que é a época mais linda do mundo. Tem amigos, e crianças imundas e sorridentes correndo até anoitecer. Tem barulho de mar, tem barulho de vento, e tem também o entra e sai na correria para fazer as coisas do dia a dia, mas sempre tem o chegar em casa, bom, independente da hora. Tem o acordar sem pressa, e o mate argentino. Tem noite de queijos e vinhos, pizzada integral e um canto pra se esconder quando precisa ficar sozinho.

A gente sabe que não pode se apegar, expansão imobiliária, Praia Brava sendo engolida pelos gigantes, mas esses momentos-presentes que ficam pra sempre são presentes pra vida. Um dia tudo vai estar diferente, mas o que é de valor tá impresso na alma.
Só não tenho as galinhas, e se tivesse, não ia rolar o ritual da empregada matando e tirando as penas para fazer peteca.
Segue o texto então. Pensem em um quintal, e pensem na importância que as coisas vividas na infância têm pro resto da nossa existência.

Um quintal
Danuza Leão
Quando uma pessoa começa a melhorar de vida, pensa logo em comprar uma boa casa. E o que é uma boa casa? É preciso um jardim e uma piscina, imaginam os pais. Eles querem para as crianças uma infância saudável, com confortos que nunca tiveram, mas não pensam no principal: um quintal. Um quintal não precisa ser grande, e o chão deve ser de terra batida. Nele deve haver algumas árvores que não pareçam ter sido plantadas, mas sempre existido. Um abacateiro e uma goiabeira, de goiaba vermelha, são fundamentais. No fundo, um galinheiro tosco, com uma porta quebrada, para que as três ou quatro galinhas possam correr quando alguém quiser pegá-las. Nenhum computador levará uma criança ao deslumbramento que ela terá ao encontrar um ovo e segurá-lo, ainda quentinho. É o mistério da vida nas mãos dela, mais absoluto e mais simples do que qualquer livro de filosofia.
Um dia, a cozinheira avisa que vai matar uma galinha para o molho pardo. Os meninos pedem para ver a cena trágica; a mãe não quer, mas a empregada, acostumada, com o facão na mão, facilita. Se a galinha tiver dentro da barriga aquele monte de ovinhos, aí a lição de morte – e de vida – será ainda mais completa. E mais lições serão aprendidas quando alguém sugerir fazer uma peteca com as penas mais duras e algumas palhas de milho. Mas será que alguém sabe do que estou falando?
Voltando: esse quintal deve ser meio abandonado, mas muito limpo; duas vezes por dia a empregada, cantando bem alto, dá uma varrida. É importante também que haja um tanque para lavar o pé de alguma criança quando ela pisar descalça numa porcaria, e um varal com pregadores de roupa de madeira. Nesse lugar, não vai ter horta nem pomar organizado. Em compensação, é bom que exista do outro lado do muro uma enorme mangueira para que se possa praticar o melhor crime do mundo: roubar as frutas do vizinho. Nos fundos de um quintal, deve haver também uma touceira de bananeiras ou bambus e, claro, um adulto dizendo sempre para tomar cuidado, pois ali pode ter uma cobra. Não há infância que se preze sem medo de cobra. Quando as goiabas começam a crescer, fica todo mundo de olho até a primeira delas estar no ponto para ser arrancada e mordida ali mesmo, sem lavar. E que sensação terrível quando se vê o bicho da goiaba se mexendo. Aí, sem que ninguém precise dizer nada, você começa a aprender que a vida é assim: ou se compra uma goiaba bonita, mas sem gosto, ou se espera com paciência ela amadurecer no pé até desfrutar o supremo prazer de dar aquela dentada – com direito a bicho e tudo.
Mas o tempo voa. De repente você se sente só, abre o caderno de telefones e percebe sua pouca afinidade com os nomes que estão lá, que tem vivido uma vida que não tem nada a ver e começa a procurar um sentido para as coisas. Não encontra resposta, claro, mas um dia está no trânsito, vê um terreno baldio, se lembra daquele quintal no qual não pensa há anos e percebe que essa é a lembrança mais importante e mais feliz de sua vida. E passa a olhar o mundo com a superioridade de quem tem um tesouro guardado dentro do peito, mas ninguém sabe.


Danuza Leão é cronista, autora de vários livros, entre os quais Na Sala com Danuza 2 (ARX) e Quase Tudo (Cia. das Letras)

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